Novo normal de masculinidades

Ou, questões para pensar masculinidades na pandemia

Tulio Custódio
11 min readMay 16, 2020
"Father, Father", da artista Shaina McCoy (Instagram — @wallflowermccoy )

No meio do turbilhão da pandemia de coronavírus, as incertezas do futuro, o número de mortes e uma série de insistências acerca do novo normal vem acercando o debate público. Dentre elas, questões que tangenciam o debate (possível e necessário) de masculinidades como o tópico violência doméstica. Não vou puxar todos os dados aqui, mas sabemos (ou vcs não sabem, mas aí uma googlada básica: "dados violência doméstica quarentena") que eles têm crescido e é assunto de primeira ordem para falar sobre comportamentos atrelados a um modelo padrão de masculinidades atrelada a uma sociedade patriarcal colonialista capitalista de superioridade branca.

Mas a intenção desse pequeno texto é trazer alguns elementos para pensar outras questões para masculinidades, iluminadas com o tema da pandemia, e as expectativas geradas n' o que será daqui para frente?. Primeiramente sobre dois perfis possíveis de performance que encontramos nesse contexto: o negacionismo e o novo-homem da casa. Em seguida, que elementos sobre ressignificação do comportamento performático desse último perfil que, talvez evidenciaria mais uma reprodução menos aparente de padrões éticos de masculinidade hegemônica patriarcal. Preciso antes de tratar fazer uma pequena contextualização de onde se insere essas reflexões, aí depois vamos ao ponto.

Contextualizando o debate

Bem, para alinhar de início: não há novo normal de masculinidades. Esse título é só um clickbait (espero que tenha dado certo, se vc chegou até aqui…) para atrair possíveis interessados. O que temos visto é essa profusão de "novos normais" como se fosse uma chavinha mágica no qual vc acopla "novo normal" com algum tema ou tópico e voilà você sabe o que vai acontecer com aquele assunto daqui por diante. Prometer o futuro é uma característica muito presente em uma sociedade que tem dificuldades em lidar com o tempo, justamente porque este foi esvaziado de sentido no contexto da modernidade. Também não vou me demorar nesse ponto, mas recomendo reflexões de Walter Benjamin e bem como filósofos que têm se debruçado sobre isso (gosto, por exemplo, da reflexão de Paulo Arantes sobre "O Novo Tempo do Mundo" — tem livro e tem palestra no Youtube, vê lá).

O que podemos falar de novo normal em masculinidades e entender como possíveis determinações concretas que marcam a realidade ética e performática do assunto podem ajudar a buscarmos ou entendermos possíveis movimentos no assunto. Dessa forma o que proponho aqui é um pré-hipótese para pensar possíveis aportes de reflexão nesse contexto.

Vale ressaltar o que trago na "bagagem", ou seja, de onde parto da reflexão que vou propor aqui. Além do debate teórico feito pelas feministas negras (especialmente bell hooks — de quem, recentemente, estive envolvido no projeto da revisão técnica da tradução do livro dela de masculinidades negras, We Real Cool, trabalho de tradução feito brilhantemente pelo

, que deve sair logo menos pela Editora Elefante), parto também de alguns elementos que tracei no meu artigo Per-vertido Homem Negro (no livro Diálogos Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades, organizado pelo Henrique Restier e Rolf Souza) e o debate convergido sobre neoliberalismo e desenvolvimento do capitalismo(que também está na obra de bell hooks, mas dialogo também com Angela Davis, Audre Lorde, Wendy Brown e Cornel West). Isso não significa que você, que chegou até aqui e não necessariamente leu ou conhece tais trabalhos dessas pessoas, não vai conseguir acompanhar o que apontarei. Apenas que se tiver interesse ou dúvidas, é possível rastrear a reflexão por meios dessas pessoas citadas aqui ;)

Vamos à reflexão. Em termos dimensionais, a discussão sobre masculinidades tem avançado muito pela perspectiva comportamental acerca dela. A dimensão da performance (estética) ainda é o grande centro das atenções, e acredito que faz sentido porque ela trata do sensível, do perceptível, mas também ela encabeça a primeira leitura sobre os dados fundamentais que envolve a realidade dos homens, e sua interação social concretamente determinada pelo marcador gênero. Dados sobre violência, dados de vulnerabilidade, desigualdade, há vários indícios sobre como comportamento e atributos comportamentais vinculados aos homens determinam uma série de privilégios e vantagens, mas também problemas e lacunas em uma ordem social patriarcal colonialista capitalista racista.

Quando damos um zoom sobre as dinâmicas históricas de exploração, dominação e opressão engendradas e reproduzidas nesse sistema historicamente colocado, percebemos que gênero (como marcador) ajuda a entendermos alguns saldos de desnível e desigualdade colocados na sociedade. Mesmo quando (e sempre) interseccionamos com outros marcados que demarcam também experiências históricas concretas, como raça e situação de classe, os desníveis e desencaixes também podem ser perfeitamente percebidos.

Sobre nós homens negros, por exemplo, sabemos (ou deveríamos saber) o quanto os dividendos do patriarcado, apesar de cair em "troquinhos", não nos beneficia ou nos dá plena "posse e acúmulo" desse poder. Os troquinhos ocorrem correntemente e se referem ao esforço que nós fazemos projetando e emulando uma performance de masculinidade que seja párea para projeto de masculinidade hegemônica patriarcal, projeto este que tem raça, tem classe e tem territorialidade demarcadas. Ao exacerbarmos essa emulação, os nossos troquinhos se tornam moedas suficientes para "pagar por vidas que valem menos", ou seja, no limite sacrificamos a nós e às nossas e nossas, por meio da violência, da imposição de controle e rivalidade.

Tudo isso nos remete ao fato de que a dimensão ética, outra dimensão fundamental para entender as relações sociais, pouco ou nada muda. Talvez os comportamentos mudem — e mais a frente especularei em torno disso — mas a determinação de um projeto de binarismo hierárquico de morte, que pauta as nossas sociedades patriarcais colonialistas capitalistas racistas e, por consequência, o projeto hegemônico patriarcal de masculinidades, prossegue. Portanto, olhar os padrões de comportamento lendo qual elemento ético de poder que estão por trás deles, já nos dá, numa boa expressão popular, uma "baixada de bola" sobre o potencial de enxergar as mudanças comportamentais como realmente transformativas — não que não possam ser, mas novamente: qual é a orientação ética que informa tais comportamentos?

Sobre perfis comportamentais

Um dos modelos comportamentais que tem sido discutido, por exemplo, e em forte consonância com o modelo hegemônico patriarcal, é o do negacionista, ou, o "homem que se recusa a por máscara e reconhecer sua vulnerabilidade existencial diante do vírus". Geralmente, esse negacionismo está associado (politicamente e simbolicamente) com figuras obtusas do conservadorismo, com homens que rezam a cartilha da Tradição-Família-Propriedade e bons costumes, e que negam, seguindo a sanha do líder a realidade da pandemia. Esse modelo, de maneira muito explícita e aparente, age de acordo com a negação de se mostrar fraco ou passível de ser atingido, e assim, a recusa da doença é equivalente a presença de seu status de Homem.

O homem, nessa configuração ética de masculinidade hegemônica patriarcal, é aquele que exerce e representa o poder, e isso se realiza comportamentalmente por meio do controle (de si e dos outros, no caso, ideia de que possui controle sobre a realidade com seu corpo) e da rivalidade (ao ser o Não-possível-de-ser-estar-doente, ele exerce sua rivalidade com todos os outros homens que podem ser doentes). Não vestir máscara ou negar o vírus é performar controle e rivalidade. Ponto pacífico.

Para piorar, como os dados também vêm mostrando, os homens estão morrendo mais em decorrência do coronavírus. Claro que, além de pré condições (comorbidades anteriores, algumas delas associadas a um estilo de vida “no limite”), há um comportamento de risco que muitos homens nesse perfil negacionista assumem. Enfim, interfaces de uma tragédia.

Reparem daqui em diante e entendam que não é só "burrice" ou negacionismo irracionalista anticientífico.

Aliás, mas também não vou me estender nisso, Wendy Brown faz uma excelente paralelo entre a racionalidade neoliberal, o niilismo e ressentimento em seu trabalho "nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente" . Sem dúvida daria um bom debate a parte, pois a forma como ela compreende a conexão do rancor e a da raiva não sublimadas, a reconversão das promessas não realizadas do patriarcado por sujeitos homens que não assumem, em questões sistêmicas que envolvem o capitalismo, o lugar estrutural de poder e controle e portanto espumam, e a transmutação esvaziada da ideia de liberdade, demonstra que o tópico ressentimento (que já estava nos trabalhos dela desde Status of Injury) são de primeira ordem para diversos debates.

Agora, o meu ponto: o novo-homem da casa. O que a configuração comportamental dos homens que estão fazendo (a seu modo) o isolamento social pode nos dar pista para pensar masculinidades nesse contexto? O que pode parecer o novo, mas talvez seria a transmutação daquilo que muda para continuar igual?

Acredito que há uma bela pista de bell hooks, quando ela trata sobre homens negros, que mesmo diante de uma situação estrutural na qual não poderiam exercer sua masculinidade hegemônica representando a figura do provedor (pelo desemprego, pela não inclusão dos homens negros no mercado de trabalho, baixos nóveis de escolaridade etc), eles se sentiam "contemplados" ao poder controlar a forma como o dinheiro seria gasta dentro daquela residência. Ou seja, segundo hooks trouxe, muitas vezes pouco importava se era a mulher que trazia o dinheiro ou se ele ganhava menos, a possibilidade de controlar aquele dinheiro, controlar a forma como aquele importante insumo entrava e dava sentido do que era "orçamento de uma família", já dava a sensação de que aquele homem estava performando seu lugar de Homem.

O que significa o homem dentro de casa, agora? Os dados vêm mostrando que as mulheres continuam grandemente executando a maior parte do trabalho reprodutivo (incluindo cuidado com filhos, além das tarefas domésticas). E essa "maior parte" equivale ao número de horas, mas também à própria lógica do trabalho reprodutivo. O novo-homem dentro de casa, e executando algumas das tarefas domésticas, não significa exatamente que ele está tomando parte ativa da reprodução social daquela família. Ou seja, não significa que ele está exercendo trabalho reprodutivo e, portanto, estamos falando de uma lugar de atuação mais performático, que explicite de maneira mais aparente os símbolos com os quais ele deseja expressar.

Vale lembrarmos que o trabalho reprodutivo, concretamente, não é apenas sobre divisão da tarefas mas também sobre as condições mentais que envolvem as necessidades e execução das tarefas de reprodução da vida familiar. Ou seja, o pensar sobre "o que é preciso para cada contexto, para cada pessoa da família", o que é preciso fazer, limpar, organizar, como e quando, quem e por que. Todo trabalho emocional e mental vinculado à reprodução da vida, o mesmo trabalho que vem sendo executado por séculos por mulheres, e especialmente na realidade de uma sociedade colonialista racista, por mulheres negras (empregadas das famílias), que se realiza concretamente nas tarefas, mas é parte dela. O mesmo trabalho não remunerado ou mal remunerado que representa a geração de cerca de 10 trilhões de dólares ano no mundo. Estar na cozinha, ou estar responsável por executar algumas das tarefas, portanto, não significa tomar parte efetiva do trabalho reprodutivo. E, em uma configuração de convivência modificada pela presença em casa, também temos que levar em conjunto que a própria lógica do trabalho reprodutivo se re-molda a tal conjuntura.

Mas volto a questão: o que significa o homem dentro de casa? Aí vem ponto a pensar para debate de masculinidades: o quanto determinadas ações dos homens, dentro de casa, não seriam formas de reproduzir simbolicamente o lugar de provedor? O quanto tais atividades não estariam demarcadas por uma performance explícita que, ao invés de informar mudança, informa a intenção de reproduzir expectativas baseadas em um lugar social informado eticamente pela masculinidade hegemônica patriarcal? A pergunta e pré-hipótese é que poderia haver uma reconfiguração de espaços e atividades das tarefas domésticas para que sejam esvaziadas do sentido reprodutivo e assumam a "cara de produtivas" (ou performance de produtivas), porque determinariam, assim, o lugar do homem como provedor daquele espaço. O prover está diretamente ligado ào trabalho produtivo, logo, algo precisa ser simbolicamente reposicionado para haver essa possibilidade de leitura simbólica concretamente perfomada. Acredito que um desses espaços-atividade poderia ser a cozinha.

A cozinha, ou especialmente, o ato de fazer comida (e nessa variante podemos inserir a cozinha externa, com ato de fazer churrasco) é um ato de reprodução da vida. No entanto, simbolicamente, ele pode ser consubstanciado em "prover". No contexto do capitalismo, da realidade do salário como forma de garantia de sustento das famílias, o produto do provedor é o "salário" que ele usa para comprar os elementos necessários para reprodução da vida. Prover é pagar as contas, e, dentro disso, comprar as coisas da casa. Essa lógica, das sociedades industriais, ainda permanece diante do aumento do setor de serviços e, mesmo diante do que as pesquisas sobre trabalho vem mostrando acerca da flexibilização e precarização conectadas a uma "feminilização da força de trabalho", a perspectiva ética de exercer o papel de provedor ainda faz coro com a expectativa de controle a ser performado por um homem, "homem da casa".

Numa realidade na qual parte dos trabalhadores estão em casa por distanciamento social, apesar de muitos continuarem sendo a "renda maior" da família, a performance atrelada ao "sair de casa para trabalhar" não aparece disponível. Claro, e aí voltamos no perfil acima, os negacionistas vão buscar razões para não ficarem submetidos à quarentena, mas no geral, parte desses homens estarão em casa.

[e veja: não estou incluindo nesse perfil as pessoas em situação de informalidade do trabalho, pois grande parte delas PRECISAM de fato sair senão não possuem nenhum tipo de renda. Acredito que esses apontamentos ainda estejam circunscritos a uma realidade de classe média baixa e média, perfis e categorias profissionais que estão fazendo o distanciamento social].

Nesse sentido, como exercer no comportamental simbólico o lugar do provedor? Assumindo tarefas que podem se consubstanciar no ato de prover, e a cozinha (ou ato de cozinhar/ fazer a comida/ churrasco) poderia ser um deles. E se, de fato, for isso, por que não estamos cozinhando como forma de cuidado, de tarefa reprodutiva ao invés de enquanto provedores? Quais são as questões que homens precisam considerar e ter evidentemente explícitas acerca do trabalho reprodutivo de modo a configurar, na prática, novas estabelecidos, novas combinações e novas formas de comportamentos que não sejam os mesmos atrelados a um projeto de masculinidade hegemônica patriarcal? Qual será a consequência do prolongamento dessa realidade de distanciamento social para configuração das famílias, incluindo elementos em torno da crise? Acredito que autoras como bell hooks e Wendy Brown têm ajudado a pensar tais questões, sejam a partir da possibilidade de emular controle dentro da realidade do não-controle ou de como há uma reestruturação sistêmica em torno da "familiarização" e da importância do capital familiar diante da proposição de desmantelamento do social trazido pelo neoliberalismo. Mas precisamos puxá-las dentro do debate público.

Como disse, minha ideia com esse texto foi puxar algumas possibilidades de pensar o debate de masculinidades diante do contexto da quarentena, da pandemia, e que poderiam estar na agenda desse debate tão importante, que estava ganhando tração nos últimos anos, e precisa continuar avançando. O lugar prático que o debate de masculinidades possui é o lugar da transformação das relações, a partir dos elementos de conflito que nos mobiliza (exploração, dominação e opressão). Sem termos as relações sociais e as formas de estruturação dessas existências, dificilmente poderíamos captar dinâmicas que reproduzem e aprofundam as formas problemáticas que tanto desejamos transcender com o debate de masculinidades. E essa transformação, acredito, só pode ser levada a cabo se considerarmos a transformação sistêmica e ética daquilo que nos compõe, em todas as camadas e existências. Ser homem, em casa ou fora dela, é uma delas.

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Tulio Custódio

Sociólogo, Sócio e Curador de Conhecimento na Inesplorato. Mais: about.me/custodta ;)